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Pena e Pluma, de Sónia Bettencourt Vieira

 

Por muito que alguns façam crer em contrário, a poesia não explica, implica; o poema não afirma, sugere. Por isso o significado da imagem poética remete-nos sempre para um esfíngico segredo e para uma forte ambiguidade. Nesta perspectiva, a poesia será também uma tentativa de compreender o incompreensível.

Deste modo, ao leitor é lançado um desafio: o de descortinar o lado de lá da neblina do verso. Isto é, ele terá de ser capaz de decifrar e descodificar o(s) sentido(s) do poema, para que assim aconteça  a fruição do texto (“le plaisir du texte”, de que falava Roland Barthes).

O poema começa por ser a fascinação do incriado. No princípio é o nada. Na génese do poema está uma experiência de desolação, de vazio e de impotência perante a nudez do papel ou do écran do computador. Perante o enigma do real, o poeta dirige a sua atenção (nua e pura) não só para dizer o que o seu olhar vê, mas também para ordenar e exprimir (recriar) o caos interior, a vertigem do inumerável e do inexprimível, tudo o que de profundo e obscuro há em nós. Daí que o poeta parta em busca do indizível. Porque em poesia o indizível, é dizível.

O poema é nada e é tudo. O que ele nunca será é obra do acaso ou de uma súbita inspiração divina… E isto porque qualquer produção poética é sempre fruto de um trabalho árduo, por vezes penoso, uma conquista sílaba a sílaba, uma busca incessante da palavra exacta e essencial. 

Vem tudo isto a propósito da recente publicação de um livro leve, breve e de estreia poética: Pena e Pluma (edição de autor, Angra do Heroísmo, 2003), de Sónia Bettencourt Vieira.

Mas essa aparente leveza deixa adivinhar a complexidade de sentimentos e emoções, de afectos e memórias soltas, de “ecos e lamentos”, de ritmos e pulsações, de silêncios e sonoridades, de olhares e vibrações, de fragmentos de vida vivida e de vida sonhada.

Aqui se fala da solidão do amor, de pássaros, sonhos e anjos…

Estamos perante uma escrita que se inscreve numa poética do corpo e se escreve na exaltação do amor: sensual ou erótico, físico ou espiritual, interiorizado ou pressentido, reprimido ou transgressor, explosivo, contido ou irremediavelmente platónico… Mas sempre o amor, perante o qual o eu do poema é um ser solitário.

Pena e Pluma estabelece uma relação do eu poético com a vida, com o mundo e com os outros, através de uma viagem interior que é, ela própria, uma espécie de inquérito ao subconsciente, por um lado e, por outro, um jogo de máscaras e espelhos em que se questiona o enigma, o mistério e as contradições da existência humana: 

                               “somos livres escravos

                                do sonho e do impulso” (p. 18) 

O livro joga com os contrastes e as oposições “alegria”/”tristeza”, “dia”/”noite”, “sol”/“lua”, “verdade”/”mentira”, “amor”/“ódio”. Atente-se, por exemplo, no poema sem título, em que surpreendemos o sujeito do poema no seu estado mais contraditório: 

                            “amo-te

                        mas na verdade nunca te amo tanto

                        como quanto te odeio

                        é como se fosses o amante indesejável

                        que se esconde e chora sem parar 

                        odeio-te

                        mas na verdade nunca te odeio tanto

                        como quando te amo

                        é como se fosses uma fonte de água fresca

                        jorrando beijos e carinhos 

                        mas minto

                        e minto verdadeiramente

                        sobre o ódio que sinto em amar-te”.  (p. 27) 

Buscando o inatingível e aspirando ao impossível estado de alma, o sujeito poético idealiza o amor como um sentimento absoluto. Vive a irrealidade das coisas e o reflexo dessa irrealidade:  

                         “gosto de pensar

                          que os anjos habitam no exorcismo das chuvas”  (p. 23) 

O mito romântico do anjo surge aqui como busca dessa irrealidade, naquele que será, porventura, o melhor poema do livro: in peccatum (pgs. 29/30), a que um verso de Alexandre Borges terá servido de mote: “que nome se dá a um anjo morto?” (in as asas mortas).

O “anjo” funciona como uma metáfora, já que a ele se associa a mulher irreal e etérea – símbolo da sedução, redenção e perdição.

Aliás, a belíssima capa do livro, da autoria de Paulo Freitas, lança-nos um desafio através de uma expressão poeticamente simbólica: afinal os anjos são azuis e têm sexo… Já os desenhos de Marcos Trovão – que servem e bem os propósitos do livro – optam pela silhueta e pelo contorno da mulher enquanto polarização do desejo e sublimação do amor erótico, e não da mulher/anjo.

Pena e Pluma é feito de labirintos e incertezas, distâncias e ausências, desejos e dúvidas, mágoas e inquietações, chuvas e sentidos, encontros e reencontros de amantes que se buscam e sentem o peso de haver ilha, mar e silêncio: 

                         “sinto-me perseguida

                          pelo tom grave do mar”  (p. 21) 

                        “há um desencontro

                         no meu silêncio

                         e uma espera constante do choro” (p. 24) 

A solidão gera a navegação dos corpos, o fogo dos beijos e outras evasões rumo a uma plenitude.  

                         “poeticamente caminho

                          pelo teu corpo acima

                          movimentado pelo íntimo

                          mistério das nossas línguas

                                                      (…)

                          eis a viagem profunda!”

                          eis o exílio carnal!”     (p. 18) 

A derivação prefixal surge aqui como uma constante, pois dá conta do sentimento de angústia, melancolia e inquietação do sujeito do poema: “inexistente amor”, “amante indesejável”; a “incerteza de estar só”; as “vozes inquietas”; “as “milhas irreconhecíveis de distância”; a “intranquilidade”, a “incomparável alegria”; “a profundeza ilimitada da paixão”…

Desejando alcançar o absoluto e a plenitude, o poeta identifica-se com a Natureza e seus ciclos de vida, numa ânsia de liberdade e numa busca de um mundo natural; isto é, de uma fusão Homem/Natureza que represente o alcançar da harmonia e da unidade original:  

                        “queria ser uma rosa

                         sempre que me regasses

                         molhava-te com uma canção”  (p. 22) 

A Natureza sensualiza, já que, sendo a terra-mãe, está ligada à aprendizagem da vida e é como se fosse a mulher primordial e genesíaca, produtora da vida, do desejo e da morte, funcionando como símbolo da fecundidade e da fertilidade. Neste livro, o eu poético germina e consubstancia-se às coisas naturais: 

                         “nus: eu, tu e a árvore” (p. 14) 

Estamos perante uma visão panteísta da Natureza, uma união com a vida cósmica que, neste livro, se exprime e se expressa em moldes próximos do epicurismo.

Gostei, sinceramente, destes versos de tensão e contenção e destes poemas furtivos e banhados de uma intensa claridade solar. Apreciei a transparência plástica e a fluência poética destas palavras. A musicalidade destas sílabas tónicas. Encontrei, neste livro, o lado silencioso de Sónia Bettencourt Vieira, que escreve com os cinco sentidos.

Poetar é verbalizar o nosso silêncio e o silêncio dos outros.

Não é impunemente que se nasce numa ilha, onde a terra é pequena, o mar é vasto e o sonho é enorme. A Terceira tem, nesta jovem, uma nova e promissora plantadora de palavras, senhora que já é de uma surpreendente maturidade e de um inegável talento poético. Além disso, está na primeira linha das recentes preocupações da moderna poesia portuguesa.

Na minha qualidade de companheiro de ofício, mais vivido e menos jovem, quero aqui saudar vivamente a Sónia e o seu livro Pena e Pluma. E assegurar-lhe que faz todo o sentido escrever poesia. Porque em tempo de Internet, CD-Rom e imagem virtual, andamos todos carentes e carenciados de sonho. 

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